Aprendendo com SUPERDOTAÇÃO, da infância a vida adulta
Relato da infância sem apoio, sem conhecimento sobre a superdotação do ex-presidente da Mensa Espanha, Javier González Recuenco
Esta semana trazemos o relato de Javier González Recuenco, um espanhol de 52 anos, casado e pai de três filhas, uma delas com certeza superdotada, e as outras duas provavelmente também. Javier é ex-presidente da Mensa Espanha, uma associação internacional para pessoas superdotadas, e participou de projetos notáveis, como o documentário “Las zebras”, que desencadeou um debate sobre a melhoria da vida de crianças com alta capacidade intelectual.
Javier compartilhou sua infância marcada pela falta de apoio familiar e educacional. Cresceu sem amparo, enfrentando o sistema educacional por conta própria. Desde cedo, percebeu sua diferença em relação às outras crianças da escola, enfrentando bullying e uma infância solitária. Porém, aprendeu a lidar com sua superdotação sozinho.
Em uma entrevista à BBC News Mundo, Javier descreve a experiência de viver com um cérebro constantemente em operação. Ele compara essa sensação a um hamster correndo em uma roda interminável, incapaz de desligar. Para ele, encontrar paz de espírito é um desafio constante.
Durante sua infância, Javier não tinha consciência de sua superdotação, mas sinais estranhos começaram a surgir. Apesar de seu talento excepcional, enfrentou dificuldades na escola e foi vítima de bullying ao se destacar. Aos 15 anos, decidiu usar a violência como uma forma de integração, transformando-se de vítima em líder de um grupo de colegas difíceis.
Apesar das dificuldades, Javier não se considera uma vítima da superdotação, mas reconhece os desafios que enfrentou. Ele ressalta a importância do apoio para crianças superdotadas, algo que ele mesmo não teve na infância. Agora, como pai, procura orientar suas filhas superdotadas, incentivando-as a explorar seu potencial, mas sem sobrecarregá-las com expectativas excessivas.
A seguir trechos do relato original de Javier:
“É terrível viver com um cérebro em operação contínua. Tenho uma anedota muito curiosa.
Meus colegas, meus sócios e as pessoas com quem trabalhamos não se preocupam mais quando estamos em uma reunião e estou fazendo outra coisa no meu celular. Todos sabem perfeitamente que estou envolvido no assunto. É como se você tivesse excesso de energia constante ou espaço no disco rígido e isso é terrível.
É como uma espécie de hamster que está constantemente girando em uma roda. E não para.
Colocar a mente em branco é muito complicado. É como se você tivesse uma gaiola de grilos que é caótica e impossível de manter coberta em silêncio, por assim dizer. Isso é todo dia, o tempo todo. Quando você adormece, o que acontece é que seu corpo entra em colapso fisicamente. Mas não é que você tenha alcançado a paz de espírito.
Não há maneira para gerenciá-lo. Mas também não posso dizer que se trata de um inferno. Você se acostuma e pronto. Claro, você tem que se cercar de pessoas compreensivas. Elas têm que entender que você faz essas coisas inconscientemente.
As pessoas ficam surpresas quando veem que você parece estar distraído ou fazendo outra coisa. Normalmente você tem que ter o cuidado de seguir algumas cortesias humanas básicas, porque as pessoas gostam quando olhamos nos olhos delas, para ter a sensação de que elas têm toda a sua atenção. A linha entre superdotação e a Síndrome de Asperger é bastante tênue.
Quando criança, não tinha consciência de ser superdotado, embora começasse a ver sinais estranhos. Me tiraram de onde eu fazia creche (pré-escola, 3 a 5 anos) e me colocaram para ler com os alunos do segundo ano (7-8 anos). Sabia todos os nomes e sobrenomes dos meus colegas. Há uma série de coisas para as quais você não dá importância nessa idade, nem tem consciência disso.
Minha infância foi bastante aterrorizante. Por isso, não cobro quando presto aconselhamento a pais de crianças superdotadas — gostaria que alguém tivesse feito isso com meus pais.
Lidando com a superdotação sozinho
Quando sofria bullying, nunca busquei apoio de professores ou de meus pais. Com o tempo, entendi. Tinha a sensação de que eles não tinham absolutamente nenhuma compreensão do que eu estava passando. Os professores, tampouco.
Não sei porque foi assim. Acho que tinha um profundo entendimento de que não receberia nenhum tipo de ajuda de nenhum deles. Ou simplesmente não ousava ou tinha vergonha de admitir que outras crianças estavam abusando de mim. Não sei, é um conjunto de coisas.
Também nunca falei com ninguém sobre minha intenção de me jogar debaixo de um ônibus. Poderia ter acabado sob as rodas de um ônibus? Sim, definitivamente.
Apesar de tudo, meus pais perceberam que era diferente, mas para eles, era uma espécie de macaco de circo. Era uma daquelas crianças que falavam muito bem, muito articuladas. Era capaz de recitar muitas coisas de memória. Meus pais ficavam encantados. Era um aluno muito bom, não dava problemas. Também não contei nada a eles sobre o que estava acontecendo na escola, para ser honesto. Nunca tive uma conversa aberta com eles sobre isso, porque por muito tempo foi algo que me machucou muito e não consegui processar. Agora que consigo processar, não sei…Nunca falei com meu irmão sobre o que estava acontecendo na escola também. Sei que pode soar estranho. Mas este foi um processo pelo qual decidi passar sozinho. Era dois anos e meio mais velho que ele. Quando pudemos falar sobre esse tipo de coisa, já tínhamos 20 e 17 anos, respectivamente. Já tinha enterrado tudo no meu passado. Falei com ele quando já tinha processado tudo.
Meu pai é uma pessoa que não lê nada, mas tem o curioso hobby de comprar livros. Uma das coisas que ele assinou por muito tempo foram alguns livrinhos que continham trechos de outros artigos que saíam em outras grandes publicações. Em um deles, havia um artigo sobre a Mensa e o li quando tinha 12 anos, mas naquele momento não fiz nenhum tipo de conexão mental.
Não entendia tudo o que estava acontecendo comigo até chegar à faculdade. Porque, durante meu ensino médio, embora eu nunca tenha ficado em recuperação, meu desempenho foi medíocre, porque estava muito ocupado sendo uma espécie de “valentão” nas ruas.
Quando entrei na faculdade raspando, não havia ninguém ali que eu tivesse de impressionar e eu podia me concentrar única e exclusivamente na minha tarefa. Terminei a licenciatura em Engenharia Informática sem esforço e depois fiz outra licenciatura, Administração de Empresas; esta à distância.
Maturidade
Meu pai era uma pessoa que teve trabalhos muito variados até conseguir começar a trabalhar na Telefónica (operadora). O sonho de toda a vida do meu pai era que eu trabalhasse na Telefónica.
Quando estava no primeiro ano da licenciatura, uma tarde ele me disse: “Ei, Javier, esta noite não chegue muito tarde, nem muito bêbado, porque amanhã você presta concurso”. Tinha 18 anos. O concurso ao qual me inscrevi era de auxiliar de informática.
Desde os 12 anos já me envolvia, possivelmente fugindo da realidade, em tudo o que tinha a ver com os primeiros computadores pessoais que chegaram à Espanha. Prestei concurso aos 18 anos, no primeiro ano da universidade. Cerca de 10 mil haviam se inscrito e eu terminei entre os 50 primeiros.
Percebi que trabalhar para a Telefónica me dava acesso a todos os computadores que eu queria e permaneci nesse emprego. Passei alguns anos na empresa, onde também fui um dos fundadores da Telefónica Data (subsidiária do Grupo Telefónica) em 1995. Mais tarde, em 2002, montei uma start-up.
No escritório, me tornei uma espécie de bichinho esquisito, porque tinha 19 e 20 anos, e entendia de computadores como ninguém. Enquanto o restante das pessoas que trabalhavam ali eram engenheiros de telecomunicações na casa dos 40 ou 50 anos, que não haviam tido acesso a computadores nem estavam tão à vontade quanto eu.
Acho que foi aí que percebi que isso poderia ter algo a ver com o artigo que li quando tinha 12 anos e liguei os pontos. Procurei ver se havia algo assim na Espanha e descobri que eles estavam aqui desde 1984. Foi quando decidi me candidatar à Mensa, onde fiz as provas e entrei, em 1992.
Entrei na Mensa quando já tinha terminado minha via crucis. Já tinha processado tudo na minha cabeça. Como disso, foi um processo completamente individual. Assim que cheguei onde cheguei e internalizei e digeri, poderia ter me perdido a qualquer momento. Poderia ter me jogado debaixo de um ônibus, poderia ter me acabado nas drogas, poderia ter me acabado no álcool.
Tenho três filhas, de 14, 13 e 7 anos. Uma com certeza é superdotada e as outras duas, provavelmente, também são.
Necessito que elas sejam crianças e se desenvolvam emocionalmente. Mas converso muito com a que é claramente superdotada. É importante que elas entendam que há mais delas no mundo e que somos nós que temos que nos adaptar.
Se tivesse tido apoio, isso teria me poupado de muitos problemas.
E mesmo assim, ela tem problemas de integração e enfrenta outras dificuldades na hora de fazer as coisas, porque empatia básica não é comum em dinâmicas de grupo. O grupo trabalha em uma velocidade e você em outra. Isso sempre cria atrito. Mas ela não tem o nível de desamparo e falta de compreensão do que está acontecendo que eu tinha. Ela está numa condição melhor do que eu.
Se você tem um filho superdotado e com altas capacidades e não sabe como agir, Javier González Recuenco recomenda:
- Deixe-os serem crianças e não os sobrecarregue com aulas extracurriculares como idiomas ou instrumentos musicais.
- Incentive-os a explorar e tente oferecer-lhes o máximo de oportunidades possíveis para explorarem, mas sem a obrigação de maximizar suas qualidades.
- Tente localizar outras crianças como elas, para que saibam que não são as únicas no mundo.”
O relato de Javier é um testemunho real da importância de reconhecer e apoiar as pessoas superdotadas na sociedade. Seu relato destaca a necessidade de compreensão e aceitação, garantindo que uma criança superdotada, assim como toda criança necessita de apoio para se desenvolver.
Quantas crianças, jovens e adultos se sentem como peixes fora d’água? Quantas pessoas são tratadas como desajustadas, com transtornos, e na verdade são superdotadas não identificadas? Por falta de conhecimento e acolhimento, seus potenciais não são desenvolvidos, e muitas vezes acabam adoecendo, pois o ambiente onde estão inseridas não as reconhece nem as respeita, impedindo-as de serem quem são. Basta mudar de ambiente, de escola, se autoconhecer, e as potencialidades começam a surgir.
Curadoria do texto: Cilene Cardoso do Grupo Crescer Feliz Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61844810.amp
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