Superdotação, estamos falando sobre a mesma condição?
Por Fernanda Fernandes do @super.cientifica, a superdotação como funcionamento neurobiológico.
Quando eu descobri a superdotação (usarei aqui no texto como sinônimo de superdotação intelectual) da minha filha aos 3 anos recém completados, eu não sabia nada sobre essa condição.
Ela sempre foi muito curiosa, muito falante, com rico vocabulário e já lia aos 2 anos de idade. A precocidade intelectual dela era tão evidente que onde quer que eu fosse até hoje, o que sempre ouço das pessoas que passam pelo menos 5 min conversando com ela, é a frase “Essa menina é muito inteligente!”.
Segundo a primeira neuropsicóloga que fez a avaliação da minha filha, ela foi até o momento a criança com a identificação mais precoce que ela já fez. Desde então eu comecei a estudar sobre superdotação, e mesmo após 5 anos estudando sobre o assunto, eu ainda tenho muitas perguntas.
Avaliação da superdotação
Senti a necessidade de fazer uma nova avaliação neuropsicológica após minha filha completar 7 anos, pois a partir dos 6 anos outros instrumentos podem ser utilizados e uma avaliação mais completa do funcionamento cognitivo pode ser realizada. Essa segunda avaliação mostrou para mim e para a escola o enorme desafio que minha filha impõe, por estar em um nível muito elevado da superdotação. E devido ao sofrimento escolar, um ambiente onde ela não tem interesse de estar, uma vez que é muito autodidata, eu busquei a aceleração de série.
Entendo que a aceleração não é uma adequação escolar para todos os superdotados, mas no caso da minha filha eu sabia que não seria um problema. Pular uma série (do 1º ano para o 3º ano) não fez nenhuma diferença para ela, seu alto desempenho em todas as áreas de conhecimento e domínios de conteúdos da série seguinte (4º ano, verificado por provas de conteúdo pela escola), inclusive, me fizeram questionar se ela não deveria ter acelerado 2 anos e não somente um ano. Mas uma nova aceleração é uma decisão que ela irá tomar no futuro.
Percebo que a superdotação não é um conceito claro para as pessoas, nem para os educadores e nem para os profissionais de saúde. Muitos mitos ainda estão presentes nas cabeças das pessoas. O que torna essa compreensão da condição ainda mais difícil é que a teoria seguida no nosso país, trata de desenvolvimento de talentos e não da compreensão do que é o fenômeno.
Neurodivergência
Fala-se muito que a superdotação é uma neurodivergência, logo é um funcionamento neurobiológico diferente da norma da população, mas ao mesmo tempo inclui-se, muitas vezes, as crianças de desenvolvimento típico (capacidade intelectual média) nessa mesma classificação de superdotado.
As pesquisas robustas internacionais, principalmente na Europa, que é berço de muitas ciências, e ainda trazem muitas contribuições científicas relevantes, validam a superdotação por meio da inteligência, vinculando à medida de QI e colocando que 2% a 5% da população é superdotada (correspondente ao percentil > 95 ou > 98). A superdotação, portanto, é vista como funcionamento neurobiológico, não sendo possível descartar a avaliação neuropsicológica, que inclui a medida de QI, para a identificação. Logo os comportamentos de superdotação são resultado desse desenvolvimento cerebral diferente.
Então, como a gente consegue compreender o que de fato é da superdotação e o que podem ser efeitos confundidores, que não faz parte dela?
Neurobiologia
Seguindo este conceito de funcionamento neurobiológico, a superdotação e o talento criativo são condições diferentes, se o último corresponde a um desenvolvimento típico (QI médio). Por isso não é interessante unir todos no mesmo conjunto, porque dificulta a compreensão da condição. Por exemplo, sabemos que existe TEA+TDAH juntos, mas para eu entender quais características são de TEA, eu preciso descartar as características confundidoras de TDAH. Se associarmos características que são somente de TDAH, como sendo também de TEA, as chances de diagnósticos errados aumentam.
O mesmo serve para a superdotação que ainda é menos compreendida, sendo fragmentada em diferentes tipos. Mas para as pesquisas conseguirem avançar, com metodologias corretas, que evitem fator de confusão, primeiro precisamos definir quem é esse conjunto de investigação. Temos muitas definições de “superdotação”, baseada em talento artístico ou psicomotor (talentoso criativo), baseada em desempenho escolar e domínios em áreas acadêmicas específicas (superdotado em área específica) e baseada na capacidade intelectual superior (superdotado intelectual). Como podemos entender os fundamentos neurobiológicos da superdotação, se unirmos no conjunto de pesquisa seus pares de desenvolvimento típico?
Definição
A definição de superdotação baseada em desempenho escolar ou em domínios específicos é falha e torna difícil a identificação, porque a pessoa só será considerada superdotada durante a sua vida escolar. Se ela não mudar de área de interesse, se ela não sofrer desmotivação para seguir desempenhando alto nesta área específica. E algo que percebo, que diferencia as crianças superdotadas das crianças com desenvolvimento típico que apresentam alto desempenho acadêmico ou conquistam medalhas em olimpíadas é a ausência de esforço e dedicação para alcançar tais conquistas. Por vezes as crianças superdotadas nem se interessam por esses resultados, diferentemente do aluno estudioso e de desenvolvimento típico, que sente orgulho das suas notas altas e medalhas conquistadas porque exigiu um esforço e dedicação para alcançá-las.
Eu acredito que o papel da escola é desenvolver todos os talentos, mas no caso da superdotação, não se trata de desenvolvimento de talento, mas compreender e permitir que a criança siga seu próprio ritmo de aprendizado. Logo a grande desmotivação, que acaba gerando problemas socioemocionais nos superdotados é a falta de flexibilidade dos currículos escolares e a ausência de um programa diferenciado para superdotados nas escolas.
O ambiente escolar está sempre aprisionando essas crianças com seus pares etários e criando barreiras, lentificando o ritmo acelerado de aprendizagem delas.
Enquanto não avançarmos nessa discussão, unindo públicos diferentes, com demandas diferentes na mesma classificação, as pesquisas não avançarão, os programas acadêmicos para superdotados não surgirão de forma adequada nas escolas e as demandas clínicas dessas crianças se amplificarão. É importante ressaltar que os profissionais da saúde e da educação que lidam com a infância precisam ter uma ideia clara e consolidada da superdotação, para que a identificação e as adequações escolares ocorram cedo na vida dessas crianças.
Texto: Fernanda Fernandes do @super.cientifica Curadoria: Cilene Cardoso, grupo Crescer Feliz
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