Altas Habilidades e Superdotação

Superdotação por um olhar através da memória afetiva ampliada

Por Ana Barbosa @construindocomafeto, Psicopedagoga, Neuropsicopedagoga, mestre em Psicologia, mãe de Vivi 5 anos.

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“Percepções dos atendimentos clínicos psicopedagógicos e minha experiência como mãe de uma criança superdotada.”

Para uma estudiosa de desenvolvimento infantil, com base teórica de Vigotski, foi sempre um desafio diferenciar o que era estímulo do contexto da minha filha, e o que era algo de um funcionamento orgânico diferenciado. Do mesmo modo, quando voltei a atender e a trabalhar com a inclusão, pós pandemia, foi surpreendente perceber como as crianças que chegaram até mim tinham coisas que fugiam do contexto, que eram fruto de suas histórias.

Definindo o indefinido

Fui professora titular por 3 anos de uma pós em Inclusão Escolar na universidade. Lecionando a disciplina de Neurociência e Avaliação, sempre pedia apoio dos colegas para falar de Altas Habilidades/Superdotação. Ao conhecer diferentes olhares e críticas, percebi que estávamos falando de algo muito vivo, borbulhando no momento presente.

Aos amantes de Rezulli, até aos que jogam os três anéis no lixo, eu não me encaixava. E meu olhar de alerta pela minha filha crescia paralelo aos meus estudos. A Vivi falou muito cedo: com 6 meses já saía sons bem definidos; e com 1 ano já falava muita coisa, com uma memória impressionante.

No meio do caminho, tanto dos meus estudos, quanto da busca de conhecimento da minha filha, veio a pandemia. E foi como aquele famoso poema do Carlos Drummond de Andrade:

“Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra”.

E sim, essa pedra impactou o desenvolvimento de muitas crianças, com atrasos e dificuldades de socialização, mas a minha filha evoluía e se destacava muito no processamento de informações, criatividade, comunicação e percepção emocional do entorno.

As crianças com Superdotação pareciam se organizar diferente. Ainda que eu tenha proporcionado um ambiente enriquecido, ela poderia não ter reagido ao estímulo. No entanto, não: ela seguia respondendo bem.

E as crianças que atendo também pareceram responder aos estímulos, independente de suas dificuldades. Essa possibilidade de reação, de mover ao que o outro põe, é algo que me chamava atenção.

Por isso, fui buscar artigos internacionais, pesquisas robustas que estivessem testando o funcionamento. A Linda Silverman me pareceu um encontro interessante. Silverman chama a atenção para a complexidade do processo de pensamento do indivíduo; para a intensidade de suas sensações e emoções; e para a consciência que o indivíduo superdotado tem como resultado da união destes fatores.

Não temos definição exata do que é, mas me parece bem importante saber que é um fenômeno em que o indivíduo necessita de apoio.

Afeto

Minha filha nunca teve hiperfoco, nunca teve crises emocionais que não conseguisse gerenciar. Tanto que não cito muito, no meu trabalho, minha vivência com ela, pois acho que, como profissional, fiz uma intervenção precoce nos possíveis problemas que poderíamos enfrentar.

A busca por avaliação foi meu “afeto bom” para ela. Fui tirar a dúvida com uma neuropsicóloga de confiança: se era um funcionamento acima da média vindo de um contexto enriquecido, ou se ela realmente poderia ter superdotação.

E depois de todos os testes aplicados, nós recebemos o resultado indicando superdotação, com uma boa regulação emocional. O meu maior desafio foi achar escola. Passamos por uma jornada de sofrimento, pois ela narrava muito bem os acontecimentos ruins na escola, com riqueza de detalhes e julgamentos interessantes sobre o que ela e os amigos passavam.

Nem vou falar da angústia da falta de inclusão: caberia um livro, rsrs. E depois de várias tentativas, achamos uma escola que forneceu o que ela mais precisava: AFETO BOM.

Como estudiosa de Neurociência, e me aprofundando sobre emoções, sabia que acolhimento, atender a quem ela realmente era, seriam bons instrumentos para aprender.

Com ajuda de uma professora, que além de capacitada, era extremamente carinhosa, ela fluiu muito na escola.

E ao ver isso na minha filha, percebi que, nos meus atendimentos, poderia fornecer o mesmo substrato de afeto para gerar ganhos.

As crianças com superdotação apresentam uma sensibilidade maior ao que se passa no seu próprio corpo e ao que eles percebem nas relações e no espaço.

Portanto, por mais que pareça pouco, ou até superficial, é extremamente importante ouvi-las, abraçar suas ideias, valorizar sua potência criativa, seu espetáculo em absorver conteúdo.

Elas sabem o quanto são capazes. Resta a nós, compreendermos isso.

Memória

Alguns estudos mostram como as memórias das crianças que tem superdotação são um ponto forte, assim como o uso do córtex pré-frontal.

No entanto, vivenciei isso de uma forma muito intensa. Vivi sempre lembrava os detalhes das coisas, e depois que passei a aprofundar os estudos sobre Neurociência Cognitiva, eu testava.

No jogo da memória, ela tinha um certo desempenho, mas o grande destaque era quando eu escondia alguns objetos enfileirados e ela lembrava todos que estavam faltando. Certa vez, com apenas dois anos, lembrou onde minha mãe colocava o paninho da mesa de centro. Quando visitamos minha mãe, ela tinha 1 ano, e voltamos depois de um ano. Ela viu que minha mãe tinha mudado de lugar, e então, colocou no local anterior.

Você sabe que tem algo diferente quando todo mundo fala: essa menina é muito além, ela lembra de tudo, ela fala de tudo. Ela lembrava muito bem das cores das nossas roupas, caminhos percorridos.

Todas as 4 crianças com superdotação que atendo se saem muito bem nos jogos em que texto memória operacional. A memória, segundo o brilhante neurocientista Iziquierdo, tem um ao alto grau de alerta emocional envolvido.

Esse autor nos lembra que a evocação, extinção e reconsolidação das memórias, estão ligadas ao modo como aquele conteúdo nos fez sentir. O que me impressiona, diante da minha observação – e trago nesse relato – é que o cérebro, tanto da minha filha, quanto dessas crianças, formam mais memórias, de algum modo sentem mais o mundo.

O professor que valoriza o potencial delas são extremamente impactantes nessa formação de memórias, assim como o professor que poda, silencia.

Como assim ampliada?

É nítida a intensidade como as coisas acontecem. Só não tenho muitas demandas de controle inibitório e flexibilidade com a Vivi, porque criei muitas estratégias de lógica: tempo de espera, modo de resolver os problemas, gerenciar a dor.

Quando ela se machuca, a gente conta os minutos de duração da dor, e ela se acalma. Quando vamos embora de um lugar, sempre dou 5 minutos, e isso ajuda ela a se organizar para ir sem insatisfação. Alguns exemplos de muitos que vou tentando, e nem sempre dão certo, mas apoia o intenso que ela é.

Vivi disse que queria chorar quando ouviu a história da escravidão em uma visita ao Quilombo dos Palmares. Ela ficou preocupada quando a professora saiu mais cedo da escola para levar o filho ao médico. Ela chora se eu choro. É uma sensibilidade maior do que o esperado para sua idade.

As crianças que atendo estão construindo maior controle inibitório. Por isso nossa intervenção. No entanto, elas sentem a separação dos pais de um jeito diferente, sentem o distanciamento do adulto, a conduta conservadora da professora, expressam medo e ansiedade muito acima da sua idade.

É tudo que vi com uma lupa, por isso, ampliado. Temos aqui realmente um ponto importante para cuidar. Tem crianças que escutam coisas de pais e professores e nunca mais esquecem. Tem um menino que a professora falou que ainda era novo para escrever cursiva, e, diante disso, ele não quis mais escrever.

Tem uma menina que a professora falou na cara dela que era chorona, e assim ela sempre pedia para ir embora com dor de barriga. Nunca mais conseguiu ficar bem naquele espaço e até mudamos a escola.

Tem um menino que não gosta de errar, que internaliza muito forte isso. Ele prefere não fazer do que ouvir alguém dizendo que está errado.

Tudo que é ampliado, deve, na mesma proporção, ser cuidado.

O que queria pedir para vocês:

Afeto, para o filósofo Espinosa, é primeiro uma relação com o corpo e depois com a mente. São as sensações no corpo que aumentam ou diminuem nossa potência de ação. Aumentar a potência de sentir, para ele, é também aumentar a capacidade de pensar e existir.

Portanto, antes de focar só na capacidade mental, que, sim é importante, devemos na mesma proporção se importar como se sentem, como falam, como o corpo reage ao cognitivo acima da média.

E o QI, diferente do que os outros pensam, não é um vilão. Vejo que ele demarca essa potência de ação. E diante disso, devemos ser apoio, ajudar a encontrar o caminho que leva a alegria de existir.

As avaliações neuropsicológicas são um mapa importante de quem eles são. Falo que foi um afeto bom, pois assim busquei os estímulos corretos para Vivi. Trabalhamos a consciência fonológica em pouco tempo, e ela já está lendo com 5 anos. Isso foi o que apareceu na avaliação como dificuldade e ao mesmo tempo possibilidade de melhorar e evoluir.

Queria que fosse possível as pessoas compreenderem que uma memória, um funcionamento acima da média, é também um sentir acima da média.

Pedirei licença para, no meu olhar de mãe, e ao mesmo tempo profissional, definir que superdotação é uma memória afetiva ampliada. Eles se afetam mais, e isso se intensifica ora positivamente, ora negativamente. E o mais importante: eles são muito inteligentes, mas precisam de nós para administrar tudo isso!

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